Há 35 anos, não sabemos precisar a data exata, mas foi durante o ano de 1989, o Ratos de Porão lançava “Brasil“, o quarto álbum da rica discografia da banda e que segue atual demais na história do nosso país que se mostra cíclica. Esse petardo é tema do nosso Memory Remains desta terça-feira.
Especificar as datas dos lançamentos nacionais é uma tarefa ingrata, visto que, principalmente nos anos 1980, não havia essa preocupação por parte dos artistas e gravadoras. A partir da década seguinte, a coisa foi melhorando. No caso do álbum homenageado, sabemos que o lançamento se deu no segundo semestre, pois as gravações ocorreram no mês de julho de 1989.
Na época, o Ratos de Porão já era um dos grandes nomes da música pesada produzida em nosso país. O Sepultura já estava começando a se destacar fora do Brasil e Max Cavalera havia dito em entrevistas que o Ratos era a maior banda do Brasil. Eles estavam inspirados, principalmente no Crossover britânico, resultando em uma sonoridade única por aqui e que fez com que a banda abrisse espaço entre os fãs de Heavy Metal, mas também gerou polêmica entre alguns alienados que até hoje chamam a banda de “traidores do movimento punk”, que um certo “playboy da Globo” tentou passar na cara do Gordo e por muito pouco não apanhou.
O álbum anterior, “Cada Dia Mais Sujo e Agressivo“, lançado pela Cogumelo, quando esta ainda tinha o Sepultura em seu cast, já havia rendido bons frutos à banda. Eles haviam gravado uma versão em inglês, batizada de “Dirt and Aggressive” e com isso, despertou a atenção da Roadrunner, que já havia fisgado também o Sepultura. A gravadora lhes ofereceu um contrato, que foi aceito. Entretanto, o álbum iria sair por uma subsidiária da Roadrunner, a Roadracer. No Brasil, foi distribuído pelo selo Estúdio Eldorado, um braço do grupo que controla o jornal O Estado de São Paulo.
O contrato deu a oportunidade para a banda contar pela primeira vez com um estúdio de qualidade e produção gringa. Então eles voaram para Berlim, que na época, ainda era dividida pela administração capitalista (Estados Unidos e países aliados) e a administração socialista (soviética). Eles foram para o Music Lab Studios, de propriedade do produtor Harris Johns, em uma experiência que é sempre muito bem lembrada por João Gordo.
A lembrança mais marcante dessa estadia pela Alemanha talvez seja a pitoresca história contada pelos próprios integrantes, que não dominavam o idioma de Shakespeare e tentavam falar que não tinham dinheiro e não falavam inglês (no money, no English), que muitos entenderam que eles estavam cobrando para poder dar entrevistas em inglês. A expressão pegou e anos depois, em 2012, acabou batizando uma coletânea lançada pela banda, pela Pecúlio Discos, selo pertencente ao atual baterista da banda, Boka.
A grande sacada do Ratos de Porão foi sempre eternizar a realidade da época do Brasil em seus álbuns. No álbum “Brasil“, os caras não só contaram a história caótica de um país recém-saído da ditadura, como manteve as letras atuais trinta e cinco anos depois. Como os casos de “Amazônia Nunca Mais“, que ficou tão explícita durante a desastrosa gestão do ex- ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, com todas as permissões dadas por ele para que o desmatamento fosse desenfreado, em nome do agronegócio. “Lei do Silêncio” permanece atual também. Tente perguntar a um morador de comunidade dominada pelo tráfico de drogas ou pela milícia, como é a vida por lá. Vai ser difícil conseguir alguma informação se o depoente não ficar sob a condição de anônimo.
Mas certamente as letras que estão mais atuais hoje foi que em 1989 são “Farsa Nacionalista” e “Vida Animal“. Sobre a primeira, Gordo afirma que escreveu ela como uma crítica ao período da ditadura que o país havia acabado de se libertar, mas hoje, diante da quantidade de pessoas que apoiam e acreditam nas mentiras ditas por Jair Bolsonaro, que se apossou de um discurso falso de nacionalismo para tentar transformar o Brasil em uma república fascista, ainda bem que sem sucesso. E tem gente que canta hino nacional para pneu em porta de quartel que acredita wje o inelegível estará concorrendo à presidência antes de 2030. Já “Vida Animal“, é chamada hoje por Gordo de “Melô do Bolsominion” e uma das frases cantadas por ele (Se você quer sorrir, olhe pros mendigos que não têm pra onde ir), define bem o que os eleitores do dito cujo pensam sobre os sem teto, e que dependem de ajuda com alimentação dadas pelo próprio Gordo com sua esposa Vivi Torrico e do padre Júlio Lancellotti.
Outras canções também traziam o retrato da época, como “Gil Goma“, que é uma gozação com um famoso jornalista policial chamado Gil Gomes. Antes mesmo dos programas atuais, de Datena, Marcelo Rezende e Luis Bacci, tínhamos o Aqui Agora, exibido no SBT e que tinha como “estrela”, o repórter, com uma entonação vocal bem diferente e que foi imitada por Gordo na canção. “Plabo Furado II” é a continuação da canção originalmente lançado no álbum anterior e uma crítica às diversas mudanças na economia, na tentativa de frear a inflação que deixava o país à beira do colapso. Quem tem mais de 40 anos, lembra dos preços subindo no mesmo dia, dos produtos sumindo das prateleiras e a especulação financeira a todo vapor. É o capitalismo selvagem desde sempre cruel.
Os militares também são alvos nas letras de “Brasil“. Logo eles, os militares, e não é que o ex-presidente não se orgulha de ter sido militar? E que em sua gestão, gastou dinheiro público com as forças armadas. E não foi comprando caças ou armamentos e sim comprando leite condensado, remédio para ajudar na ereção e também próteses penianas. Para esta categoria, Gordo e Cia. dedicaram as músicas “Máquina Militar“, que trata diretamente ao exército e “Porcos Sanguinários“, que fala da polícia militar, violenta naquela época e pior ainda hoje. Basta a gente olhar a polícia militar do Tarcísio de Freitas que mata rindo em São Paulo e a polícia do Cláudio Castro que não deixa adolescentes pretos andarem pelo bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro.
Musicalmente, o álbum é uma aula de Crossover. E quando a aula musical vem acompanhado de letras de protesto, é melhor ainda. E não é um protesto sem causa, é um grito de desespero e indignação com tanta coisa errada que acontecia e ainda acontece em nosso país. Se alguém quer conhecer a história do Brasil, basta apresentá-lo esse álbum, pois a pessoa terá a dimensão do passado, presente e quem sabe, do futuro do país, já que a história por aqui se repete continuamente. É considerado a obra prima do Ratos de Porão. Muitas músicas aqui são tocadas até hoje, como “Amazônia Nunca Mais“, “Retrocesso“, “Aids, Pop, Repressão“, “Beber Até Morrer“, “Plano Furado II“, “Farsa Nacionalista“, “Crianças Sem Futuro“, “Vida Animal“, “Máquina Militar” e “Herança“.
A capa também é digna de elogios. Desenhada por Marcatti, um autor de quadrinhos underground de São Paulo. A imagem retrata o caos que o país vivia (e ainda vive até hoje). Muita miséria e desgraça ao redor, mas no meio um campo de futebol, porque, infelizmente, a grande massa está mais interessada no resultado do seu time no campeonato do que no bem estar comum. É o chamado “pão-e-circo”. Mais uma evidência de quão atual esse álbum ainda é. E como seu antecessor, ele também ganhou uma versão em inglês, e essa versão deixou de fora a clássica “Plano Furado II“, restrita somente às versões tupiniquins. Os gringos não iriam entender o contexto da letra.
O Ratos caiu na estrada para divulgar seu álbum e logo logo estava de volta à Alemanha, que depois estaria reunificada, e gravaria outro grande clássico, “Anarkophobia“, que também será assunto por aqui em uma data oportuna. Em 2019, a banda realizou uma turnê para comemorar os 30 anos desta pérola. Uma pena que os shows foram como abertura para uma banda que nada tem a ver com o Ratos, pelo menos no que diz respeito ao direcionamento politico e à consciência de classe e social. O Raimundos, que à época comemorava 25 anos do primeiro álbum.
Claro que o cidadão que faz sinal de arminha com o dedo não curte a banda e vai repetir o clichê de que a banda e seus fãs devem ir para Cuba ou Venezuela, o que é um sinal de que o recado da banda foi eficaz, uma vez que, se incomodou a essa turma que não entendeu que o Rock não deve jamais andar do lado de regimes autoritários, que o estilo nasceu dos pobres, pretos e com viés contestador e subversivo. É por isso que o Ratos de Porão segue vivo, fazendo barulho e derrubando seus opositores. Esse talvez seja o álbum que melhor envelhece, dentre todos os que foram lançados por qualquer banda de Rock na história do nosso país. Merece todos os louros. É um orgulho saber que com sua bandeira antifa, o Ratos inspirou bandas de outras gerações, como o Surra, o Black Pantera, a Crypta, a Eskrota e o Desalmado, só para ficar em alguns exemplos.
Brasil – Ratos de Porão
Data de lançamento – 1989
Gravadora – Roadracer Records
Faixas:
01 – Amazônia Nunca Mais
02 – Retrocesso
03 – Aids, Pop, Repressão
04 – Lei do Silêncio
05 – S.O.S. País Falido
06 – Gil Goma
07 – Beber Até Morrer
08 – Plano Furado II
09 – Heroína Suicida
10 – Crianças Sem Futuro
11 – Farsa Nacionalista
12 – Traidor
13 – Porcos Sanguinários
14 – Vida Animal
15 – O Fim
16 – Máquina Militar
17 – Terra do Carnaval
18 – Herança
Formação:
João Gordo – vocal
Jão – guitarra
Jabá – baixo
Spaghetti – bateria