Entrevistas

Hatematter: Melodic death metal com um toque literário e cinematográfico

Hatematter: Melodic death metal com um toque literário e cinematográfico

3 de setembro de 2024


A Hatematter, banda de Metal formada em São Paulo em 2007, é conhecida por seu estilo agressivo que combina complexidade sonora e melodia, influenciado por bandas de Melodic Death e Groove Metal como Carcass, Nevermore e In Flames. Após sua demo “Meagering in Vain”, lançaram o álbum “Doctrines” em 2012, seguido por “Foundation” em 2014, inspirado na obra de Isaac Asimov. Com o álbum “Metaphor” de 2018, a banda explorou temas de ficção científica, trazendo referências de filmes como “Blade Runner” e “Mad Max”, abordando questões profundas em suas letras.

Em 2020, a banda enfrentou a perda do cofundador Gustavo Polidori, mas homenageou sua memória com o single “With Mankind Beneath my Feet“. Em 2022, lançaram o álbum “Antithesis“, consolidando sua formação e trazendo colaborações especiais.

Conversamos com o baixista André Martins e o guitarrista Thiago Ribeiro sobre a trajetória e o atual momento do Hatematter. Confira:

A Hatematter passou por várias fases desde o início em 2007. Como vocês descreveriam a evolução sonora da banda ao longo dos anos, desde a estreia com a demo “Meagiring in Vain” (ANO) e o álbum “Doctrines” (2012)? Conte-nos um pouco sobre a história da banda e essas primeiras experiências.
Martins: No começo, tínhamos uma mentalidade bem inocente sobre o que é uma composição e até sobre música em si. Pensávamos que complexidade, técnica e ser fiel a um estilo eram o que importava para fazer um som legal. Porém, logo na nossa demo, já trouxemos elementos externos, como games e literatura, e isso impactou diretamente no som. Aprendemos na prática que o que importa é fazer um som honesto, independente do estilo ou técnica, e focar no que a gente gosta no momento. Esse início da Hatematter foi muito pautado nisso; a gente mirava em compor músicas que serviriam de trilha sonora para as coisas que a gente gostava fora da música, e isso se mantém até hoje.

O álbum “Foundation” foi inspirado na série de livros de Asimov sobre o universo Fundação. Como vocês escolheram esses temas de ficção científica e o que mais os atraiu nesse universo?
Martins: Bem na linha da primeira resposta, eu li “Fundação” e fiquei maluco com a história… a ruína de uma política imperialista, o consumo indiscriminado de recursos finitos do mundo e como a negação da ciência pode levar a humanidade à ruína (ironicamente vivemos essa distopia hoje). A partir desse álbum, aprendemos a contar histórias através da ficção científica, com críticas e camadas que podem ser exploradas pelos ouvintes e que vão além de apenas “ouvir música”. Então, vejo nesse universo uma liberdade que, em outros, talvez a gente não conseguisse alcançar nas alegorias.

Thiago: Eu e o André (Martins) somos amigos desde o colégio, e foi no “Foundation” que me juntei à gangue como letrista. Li a trilogia fundamental da “Fundação” duas vezes seguidas, e como dito acima, ficamos ambos completamente malucos com o tema. As camadas e camadas que se desdobravam eram incrivelmente ricas, e pude colocar minha habilidade de escrita à prova, com o Martins sendo a força organizadora e curadora do projeto. Com todo o pano de fundo de uma sociedade além-Terra, marcada pelos horrores do imperialismo e a dança das cadeiras da morte dos corredores do poder, escolhemos a dedo personagens, cenas e pontos-chave da trama para contar a história à nossa maneira. O convite para participar desse projeto me resgatou de um ostracismo perigoso na época e me colocou nos trilhos da escrita e da composição de forma permanente.

Foi a partir deste álbum que surgiu o interesse por incorporar temáticas de ficção científica no som de vocês? Na percepção da banda, como esses elementos contribuem na sonoridade e na mensagem que desejam passar com a música da Hatematter?
Martins: Temas delicados da sociedade são abordados de forma mais palpável nas obras de ficção científica. Por exemplo, em “Metaphor”, falamos sobre todo o nosso apoio e admiração à comunidade LGBTQIA+ na música de abertura do álbum, usando como alegoria o episódio “San Junipero” da série “Black Mirror”. Na sonoridade, esses temas nos desafiam a utilizar um instrumental que ajude a passar a mensagem. Na própria “Before the Plunge”, citada como exemplo, temos uma constante correria, quase sufocante, durante toda a música, que remete a esse desejo delas de continuarem juntas na além vida, uma vez que na vida em si, essa dignidade lhes foi negada.

Thiago: Como o Martins muito bem disse, a ficção tem como obrigação fundamental fazer sentido em si, uma vez que a realidade não deve explicações a nada nem a ninguém. Esse fato torna a ficção um instrumento virtualmente inexaurível para colocar problemas reais sob severo escrutínio. Através de personagens e tramas profundamente complexas e contraditórias, com as quais é fácil se identificar, avançamos a sonoridade da HM de forma orgânica, para que pudéssemos colocar nossa visão sobre essas discussões à mesa.

Em “Metaphor”, vocês exploraram temas de filmes como ‘Blade Runner’ e ‘Mad Max’. Conte-nos um pouco sobre a incorporação de influências da sétima arte na composição das músicas desse álbum.
Martins: Nós adoramos cinema e bons filmes. Para mim, e penso que para todos da banda, limitar a arte é sempre um erro. Uma música pode virar um filme, um quadro, uma HQ, e o revés também. Antes de cada álbum, fazemos uma reunião em que discutimos todas as possíveis obras que podem ser abordadas, jogamos tudo na mesa e depois fazemos um pente fino. Na época do “Metaphor”, estávamos empolgados com “Estrada da Fúria” e “Blade Runner 2049”, e então eles acabaram passando. A partir desse momento, eu e o Thiago entramos de cabeça na história, ele fazendo um trabalho mais acurado de imersão e eu servindo como pilar consultivo para o que ele precisasse.

Thiago: Complementando brevemente o que o Martins disse, se nosso processo criativo das letras fosse um barco, eu seria a tripulação fazendo com que a embarcação em si trabalhe corretamente, e ele o capitão, que organiza e incentiva essa tripulação, mantendo o objetivo final sempre claro e em vista a todo o tempo.

A perda de Gustavo Polidori foi um momento difícil para a banda. Como vocês lidaram com esse período de luto e transformação?
Martins: Foi um momento complicado e que pegou todos de surpresa. Acho que lidar com a morte não tem muita opção; é um período de aceitação que pode demorar menos ou mais, dependendo das condições do momento. Falando como banda, a reação imediata foi continuar e compor; qualquer reação diferente seria uma ofensa à memória do Gustavo. Tanto que em 2024 estamos falando dele e lembrando com carinho, graças à continuidade do trabalho.

Thiago: Foi de fato uma porrada muito forte, repentina, e que machucou todos nós. Mas, como foi dito, lidar com o luto não é opcional, e cada um de nós lidou com isso à sua forma. Seguir em frente, pela nossa ótica, era o único caminho. O legado do Gustavo segue vivo através de nós e concede ao nosso amigo querido a imortalidade, tal qual somente a arte é capaz de conceder.

Com a entrada de novos membros e colaboradores, como Rafael Augusto Lopes e Thiago M. Ribeiro, como foi a adaptação e a contribuição deles no desenvolvimento do som e da dinâmica da banda?
Martins: O Thiago já participa da Hatematter desde o “Foundation” como letrista, então não tivemos muitas dificuldades, já que estávamos acostumados a conviver. O Lopes já havia contribuído no “Metaphor” com alguns interlúdios e estava assumindo um posto de produtor da banda. Quando decidimos incorporar os synths nas músicas e não somente em interlúdios, acabamos juntando forças oficialmente para além das produções.

“Antithesis” foi um projeto realizado durante a pandemia de COVID-19. Quais foram os desafios e as vantagens de trabalhar nesse período, especialmente com o esforço à distância?
Martins: A Hatematter sempre foi uma banda com muitas mudanças de membros; somente eu estou desde 2007. Com isso, acabamos conhecendo muita gente legal e de diversos lugares. Nesse contexto, a adaptação sempre foi algo predominante na banda, e com o período da pandemia não foi diferente. Desenvolvemos um modelo de trabalho remoto que atendeu a todas as necessidades e, já no final da pandemia e seguindo todos os protocolos, nos reunimos em pequenos grupos no estúdio para gravar. Eu não sou um grande defensor de fazer tudo em casa; ainda gosto do processo de gravação em um estúdio e do trabalho coletivo. Se não fosse por isso, talvez o “Antithesis” tivesse sido lançado antes, rs.

Thiago: Foi de fato um disco composto à moda EAD, pelas imposições da pandemia. O tempo de composição se estendeu além do esperado, mas ficou claro que, mesmo com toda adversidade, nossa organização e entrosamento como compositores são efetivos. Fez falta passar mais tempo juntos, fazendo embate de ideias para chegar no melhor resultado in loco, mas o álbum em si é prova cabal da seriedade implacável do nosso trabalho.

O single “With Mankind Beneath My Feet” foi lançado em um momento difícil para a banda, após a perda de Gustavo Polidori. Como essa experiência impactou o processo criativo e a direção musical do grupo?
Martins: Acredito que foi uma experiência genuína e reativa. Nós a regravamos no “Antithesis” porque a música precisava de um cuidado a mais; porém, a sinceridade do single é válida e faz parte da história da banda. Ela só foi lançada naquele momento por causa da perda do Gustavo, e hoje posso dizer que tanto a música quanto a banda seguiram em frente.

Thiago: A regravação da “Mankind” foi uma prova de carinho ao legado do Gustavo. Com as mudanças na banda, agora contando comigo na parte musical, adicionaram-se novas dinâmicas à banda, com duas vozes à disposição. Além disso, os sintetizadores vieram à frente, assumindo um protagonismo que enriqueceu muito o som da banda nesse novo momento.

As composições de “Antithesis” foram orientadas por Rafael Augusto Lopes e mixadas por Brendan Duffey. Como foi a experiência de trabalhar com esses profissionais e qual foi a contribuição deles para o resultado final do álbum?
Martins: Já trabalho com o Brendan desde o “Doctrines” e com o Lopes desde o “Metaphor”. No caso do Lopes, quase lemos o pensamento um do outro durante o tempo que passamos compondo e produzindo no estúdio. Já no caso do Brendan, ele sabe o som que a Hatematter deve ter e consegue extrair esse resultado com excelência.

[Thiago]: Trabalhar com o Lopes é, por baixo, um baita privilégio. Ele consegue tirar o melhor de todos os envolvidos com uma gentileza e acolhimento ímpares. Tendo ele e o Martins como arrangistas e arquitetos, fico completamente tranquilo e à vontade para me focar na escrita, nas vozes e nos sentimentos que serão transmitidos em cada frase.

Vocês tiveram a participação especial de Mayara Puertas. Como surgiu essa colaboração e o que ela trouxe de novo para a faixa “Liberate Me”?
Martins: A Mayara é uma referência no Death/Thrash paulista e nacional; temos muito respeito e admiração pelo trabalho dela. Ela participa do Fanttasma, projeto solo do Rafael Augusto Lopes, e durante a finalização da pós-produção da “Liberate Me” sentimos a necessidade de uma narração feminina no início da música (referência à nave espacial da obra “Enigma do Horizonte”). O Lopes mandou uma mensagem e ela topou. Ela fez o combinado e depois sugeriu fazer mais algumas coisas… Eu, que não sou idiota, só concordei e o resultado é o que está no álbum.

Thiago:  [NÓS] que não somos tontos, obviamente concordamos com as sugestões dela, e o lindo resultado final está no disco. A Mayara é uma das maiores forças do metal no Brasil e foi uma honra contar com a participação dela na “Liberate Me”.

Atualmente, como vocês analisam o atual cenário para artistas que fazem música pesada? O que melhorou e o que ainda precisa melhorar para que as bandas possam fazer e viver da sua arte?
Martins: Tenho uma visão bem política sobre o tema que se resume ao seguinte: metal não é lucrativo. Não é um fenômeno só brasileiro o fato de bandas não conseguirem viver somente da renda gerada na própria banda; temos relatos de bandas europeias e até americanas, que já possuem prestígio na cena, e que os integrantes possuem outros empregos. Pensando em uma solução reformista, seria levar o metal para a grande mídia e aumentar a circulação de dinheiro envolvendo as bandas, focando em atender às necessidades do consumidor como um produto. Pensando em uma solução revolucionária, seria a música ser compreendida como base social e cultural, onde, desde a infância, todos tivessem acesso a esse universo e, assim, fazendo com que o consumo não tivesse ligação com o lucro. De qualquer maneira, as bandas precisam de coletivos e organização para movimentar um mercado fora do grande capital e conseguir tirar um sustento digno. Eu vejo hoje movimentos nessa direção e acredito que as bandas estão compreendendo a raiz do problema.

Thiago: Faço coro ao que o Martins disse e me subscrevo totalmente à visão socioeconômica desse problema. Não há outra forma de enxergar a raiz podre de tudo isso que não seja colocar em pauta a hegemonia da indústria que nos relega à margem cultural. Todos na HM têm empregos comuns para manter um teto sobre as cabeças, pois a entrada de grana da banda é, virtualmente, irrisória. Esse problema é estrutural, e para saná-lo, somente a coletivização e a revolução podem dar uma resposta à altura.

Desde a gravação de um disco ao planejamento de uma turnê, há todo um processo de muito trabalho que envolve contatos, logística, negociações, etc. Hoje, quais são os maiores desafios para uma banda de metal realizar uma turnê dentro e fora do país?
Martins: Dinheiro. Levando em conta o sistema que vivemos, qualquer movimentação da banda é convertida para dólar ou euro. Os integrantes das bandas normalmente possuem mais de um emprego, fazendo com que férias tenham que ser sincronizadas. Eu acredito que hoje as bandas precisam de qualidade e não quantidade; às vezes vale a pena participar de um festival maior no Nordeste, com algumas agendas complementares, ao invés de fazer uma turnê com 18 agendas em 25 dias na Europa. Como financeiramente nós já começamos no prejuízo, o maior desafio é conseguir escolher com sabedoria onde colocar o dinheiro. E a dica que eu dou para as bandas é: dentro do Brasil há bastante espaço para ser explorado antes de pensar no exterior.

Para quem ainda não teve a oportunidade de conhecer o som da banda Hatematter, quais músicas você indicaria para melhor apresentá-los a esse novo público?
Martins: Vou indicar uma música de cada álbum:
• Sweet Suffering (Doctrines)
• Stars End (Foundation)
• Before the Plunge (Metaphor)
• Liberate Me (Antithesis)

Thiago:
• A Matter of Hate (Doctrines)
• Sterile Reign (Foundation)
• The Agonizing Wail (Metaphor)
• S.T.A.Y. (Antithesis)

Quais são os próximos passos para a banda em termos de lançamentos e turnês?
Martins: Turnês estamos parados por enquanto; todos da banda estão com a vida particular bem corrida e não queremos fazer algo que possa prejudicar os integrantes de qualquer forma. Então, vamos deixar para 2025 alguma decisão nesse sentido. Devemos fazer alguns shows ainda em 2024, mas na região de São Paulo mesmo. Com relação a lançamentos, já estamos a todo vapor trabalhando em novas letras e temas, lapidando algumas composições e experimentando alguns arranjos. A ideia é não demorarmos tanto para lançar um novo álbum.

Acompanhe a banda:

Facebook: https://www.facebook.com/hatematterofficial
Instagram: https://www.instagram.com/hatematter
Spotify: https://sptfy.com/hatematter
Youtube: https://www.youtube.com/hatematter