O ano de 1994 foi repleto de acontecimentos históricos: a morte trágica de Ayrton Senna, a conquista do tetra pela seleção brasileira depois de amargar um jejum de 24 anos; na economia, o Plano Real era colocado em prática, com a nossa moeda valendo o mesmo que o dólar (realidade bem diferente de hoje, com o nosso dublê de presidente). Na música, Kurt Cobain nos deixava da maneira mais estúpida possível, mas tínhamos uma cena emergente, formanda pelas bandas do Poppy Punk. O Memory Remains desta terça-feira vai tratar do maior álbum desse período: “Dookie“, terceiro álbum do Green Day, que completa 28 anos nesta data.
Precisamos voltar alguns anos no tempo para que possamos entender o fenômeno que se tornou “Dookie”: formado no ano de 1987, o Green Day havia lançado o álbum “Kerplunk” no ano de 1991. E ainda que tenha sido lançado por um selo independente, o seu antecessor alcançou relativo sucesso, vendendo mais de três milhões de cópias em todo o mundo.
O sucesso no cenário underground atraiu a atenção de outros selos dispostos a contratar o trio californiano, que ouviu as propostas em reuniões que incluíram almoços e convite para uma viagem à Disney. Mas as conversas cessaram quando eles conheceram o produtor da Reprise Records, Rob Cavallo. Seu trabalho com a banda The Muffs impressionou e foi a razão para que a banda encerrasse seu contrato com o selo “Lookout! Records” e partisse para novos caminhos, com novo selo e o produtor escolhidos. O tempo mostraria que era uma sábia decisão.
A banda então passou ao produtor a fita demo com um esboço do que viria a ser o aniversariante do dia e Cavallo percebeu que dava para conquistar muita coisa com o material. Assim sendo, todos foram ao “Fantasy Studios“, na Califórnia, onde ficaram entre os meses de setembro e outubro de 1993. A banda não ficou satisfeita com o resultado da mixagem e solicitou ao produtor que refizesse. O mesmo aceitou. O vocalista e guitarrista Billie Joe Armstrong afirmou em entrevistas que queria fazer o som da banda soar mais seco, como o Sex Pistols no início da carreira ou mesmo o Black Sabbath. As fontes escolhidas foram acertadas, ainda que nem de longe a banda de Tony Iommi seja uma influência para o Green Day.
“Dookie” gerou muita controvérsia, pois a banda melhorou consideravelmente a produção, o som ficou mais redondo e ainda que seja uma banda punk, a sonoridade nitidamente era mais radiofônica, o que custou o banimento da banda do clube 924 Gilman Street, onde eles eram presença constante. Eles foram acusados de se vender, coisa corriqueira a qualquer banda que cresce na cena.
Mas eles não se abalaram e foram com tudo. “Dookie” tem seus méritos, ainda que a cena punk tenha se rebelado contra eles. O Rock and Roll nos anos 1990 de maneira geral sofria. As bandas de Heavy Metal estavam em crise de criatividade, o movimento Grunge que havia surgido como um tufão, estava começava a entrar em decadência, o que se confirmou com a morte de Kurt Cobain pouco tempo depois e algo deveria ser feito para manter o estilo em evidência na mídia. Nisso, o Green Day tem muita responsabilidade, juntamente com outras bandas, como o The Offspring, Rancid, Pennywise e NOFX, para citar as mais relevantes da época. Nascia o Poppy Punk, aquele estilo de três acordes, porém, moldado para ser acessível a todos. Vamos então destrinchar as 14 faixas deste álbum:
Frank Maddocks/Divulgação
“Burnout” tem pouco mais de dois minutos e muita energia. Logo de cara se percebe um ganho imenso em comparação aos trabalhos anteriores da banda. O som mais robusto, ainda bem simples e umas viradas interessantes protagonizadas pelo baterista Tre Cool. Excelente.
“Having a Blast” combina peso e melodia. O baixo ajuda a deixar a música pesada e o refrão gruda como chiclete na mente do ouvinte. “Chump” dá sequência em uma melodia que ficaria conhecida como sendo a marca registrada do Green Day por um longo período. Ela é simples, porém, bem correta.
A faixa seguinte é uma das primeiras a obter sucesso: “Longview”, que começa com umas batidas despretensiosas por parte de Tre Cool, mas Mike Dirint coloca boas linhas de baixo. A coisa fica boa no refrão onde ela ganha peso com a inclusão da guitarra. A curiosidade é que o baixista escreveu sua parte sob efeito de LSD. Obviamente que ele se esqueceria de como foi escrito e a banda refez tudo no estúdio. Grande música.
“Welcome to Paradise” foi a primeira música que me chamou atenção quando eu comprei o CD lá no ano de 1995, pela sua energia contagiante. A música, porém, não é inédita: ela já havia sido lançada no antecessor, “Kerplunk“, mas aqui ela ganhou a moldagem que precisava e ficou ainda melhor.
“Pulling Teeth” é uma música mais calminha, inspirada no Rock and Roll dos anos 1960. E aí chegam as músicas que estouraram no Brasil e fizeram com que a banda se tornasse conhecida por essas terras: até então, ninguém por aqui sabia que a banda já tinha 7 anos de história. “Basket Case” com seus riffs diretos e certeiros, contando também com um insano Tre Cool caprichando nas viradas e a energia Punk rolando solta. “She”, outra que ficou gigante em terras tupiniquins, traz consigo muita melodia e boas linhas de baixo por Mike Dirint e um refrão arrebatador. O leitor pode até pagar de true, mas não há como não se empolgar com estas duas canções.
Aí passamos para o que podemos chamar de lado B de “Dookie”, com boas canções, ainda que não sejam avassaladoras como na primeira parte. “Sassafras Roots” tem uma energia bacana e torna-se uma experiência divertida. Uma excelente canção.
“When I Come Around” é outra que podemos eleger como um dos clássicos eternos da banda. Ela não chega a ser uma balada, mas tem um andamento menos corrido do que as demais músicas e bons riffs. Billie Joe Armstrong jamais esboçou ser um guitarrista virtuoso, mas ele é bom no que se propõe a fazer. E isso é fundamental quando se apresenta uma canção. O cara faz o simples e muitas vezes o simples é bem eficiente. Eu adoro essa música.
“Coming Clean” contagia o ouvinte por ser uma música direta e com influências Punk. Ainda que a banda ensaiasse um abandono do estilo para soar mais acessível, as raízes da banda estão ali, praticamente intactas.”Emenius Sleepus” é outra excelente canção, com direito a uma mudança de andamento no meio, onde o baixista Mike Dirint se torna o protagonista. “In the End” é uma música tipicamente Punk, rápida e que deve render um mosh bem divertido.
“F.O.D.” tem na voz e violão de Billie Joe Armstrong a responsabilidade de carregar a primeira metade da música, fazendo parecer que o álbum vai se encerrar com uma balada, mas na parte final o trio volta com tudo e encerra de maneira apoteótica. Guardadas as proporções, lembra a música “Hollow“, do Pantera.
Ainda não é o fim, pois há uma música escondida. Trata-se de “All by Myself”, que é tão descompromissada que mais parece se tratar de uma brincadeira, pois ela é composta e executada por um Tre Cool que não tem muita habilidade cantando. É engraçado deixar o disco rolar e escutar essa canção.
Em quase quarenta minutos temos um belo disco, com uma primeira parte praticamente impecável e uma segunda parte bem honesta. Um disco que marcou época e não é a toa que ele foi um sucesso de crítica e vendas. Somente nos Estados Unidos ele vendeu mais de 12 milhões de cópias. Em todo o planeta foram mais de 30 milhões, o que coloca o álbum entre os mais vendidos da história.
O legado de “Dookie” é imenso: além do disco de diamante conquistado nós Estados Unidos e de três vezes platina no Reino Unido, o álbum alcançou a segunda posição na “Billboard 200”, o 13° lugar nas paradas britânicas, 3° na Suécia, 5° na Finlândia, 6° na Suiça e ficou em primeiro lugar na Austrália e Nova Zelândia. As faixas “Longview”, “Basket Case” e “When I Come Around”, lançadas como singles, alcançaram o topo da “Billboard” na categoria Alternative Songs, sendo que esta última chegou à 2ª posição na categoria principal da mesma “Billboard“.
A revista “Kerrang!” Classificou “Dookie” em 33° lugar na lista dos 100 Álbuns que você tem que ouvir antes de morrer; a “Classic Rock & Metal Hammer” classificou o álbum entre os 200 melhores álbuns da década de 1990; a “Rolling Stone” colocou o álbum na posição número 193 entre os 500 melhores álbuns de sempre: a mesma “Rolling Stone” elegeu através de votos dos leitores, o melhor álbum do ano de 1994 e na 30ª posição entre os melhores discos da década de 1990; a “Spin” compilou uma lista dos 100 melhores álbuns lançados entre os anos de 1985 e 2005 e o aniversariante do dia ficou na honrosa 44ª posição. E por fim, o “Rock and Roll of Fame” colocou o disco na posição de número 50 entre os 200 melhores de todos os tempos. Não é pouco.
A minha relação pessoal com este álbum é de extremo carinho. Além de ter sido um dos primeiros álbuns que adquiri na vida (infelizmente alguém pegou emprestado e não me devolveu mais, mas em breve quero comprá-lo novamente). Até hoje eu ainda ouço vez por outra e a sensação de prazer é a mesma de quando eu tinha 15 anos. Infelizmente o Green Day mudou sua sonoridade, mas a obra-prima dos caras está aí e nada pode manchar. Ainda que não seja 100% punk, não é um disco que deve ser subestimado. Felizmente a história prova que não foi. E nunca será.
Hoje é dia de celebrar esse disco que marcou uma geração, um álbum cheio de hits, honesto e com uma energia ímpar. Os saudosistas como este que vos escreve haverão de carregá-lo na memória. E que se aproxima dos trinta anos, com um corpinho de dezoito. Vamos dar play nesse “Dookie“,de preferência no volume máximo, sem nos esquecer de que a vacinação é importante para que possamos nos blindar desse vírus maldito e para que possamos voltar a ver nossos ídolos no palco. O negacionismo mata e o leitor é inteligente o suficiente para entender que esse tipo de ideologia jamais andou de mãos dadas com o Rock.
Dookie – Green Day
Data de lançamento – 01/02/1994
Gravadora – Reprise Records
Faixas:
01 – Burnout
02 – Having a Blast
03 – Chump
04 – Longview
05 – Welcome to Paradise
06 – Pulling Teeth
07 – Basket Case
08 – She
09 – Sassafras Roots
10 – When I Come Around
11 – Coming Clean
12 – Emenius Sleepus
13 – In the End
14 – F.O.D.
15 – All by Myself (faixa escondida)
Formação:
Billie Joe Armstrong – vocal/ guitarra/ violão
Mike Dirint – baixo
Tre Cool – bateria/ violão e voz em “All by Myself“