Em 2 de abril de 1994, o Raimundos lançava seu disco de estreia, que iria abalar as estruturas do Rock nacional na década de 1990, além de influenciar toda uma geração. O Memory Remains desta terça-feira vai te contar um pouco da história do disco auto-intitulado do quarteto brasiliense, que está completando 30 anos.
O Rock brasileiro vivia um período apático no início da década de 1990 e, à exceção do Titãs que lançaram dois dos álbuns mais pesados de sua carreira (“Tudo ao mesmo Tempo Agora” e Titanomaquia), a cena precisava de uma reviravolta para voltar a ser relevante, pois o estilo começava a perder espaço para o sertanejo e o pagode. E Carlos Eduardo Miranda, na época, jornalista da revista Bizz, teve uma brilhante ideia. Ele começou a pesquisar por bandas que poderiam emergir e após receber algumas demos de bandas de várias partes do país, ele começou a tentar seduzir os músicos do Titãs a criar um selo e contando com a ajuda da Warner para fazer a distribuição, apresentar bandas novas. Assim foi criada a saudosa Banguela Records e tudo mudaria a partir daquele ano de 1994.
O Raimundos muito provavelmente não era a banda mais legal e a mais promissora dentre as que foram selecionadas pela Banguela. Em Brasília, todos davam o Little Qual and the Mad Birds como a bola da vez. Nós já contamos a história do Little Quail e caso você tenha perdido, poderá ler, clicando AQUI. Mas o quarteto à época liderado por Rodolfo Abrantes, com certeza era a banda mais criativa e mais inovadora. E isso seria fundamental para que a banda estourasse. A banda havia sido formada em 1987, com a formação que ficou conhecida, porém, Digão era o baterista. Depois ele mudou para a guitarra e Fred assumiu as baquetas, com o saudoso Canisso, que nos deixou há pouco tempo, completando o lineup. No primeiro momento eles tocavam covers e em 1990 se separaram, voltando dois anos depois.
Neste retorno, eles incorporaram misturas bastante improváveis, mas que se mostraram certeiras: o hardcore rápido e certeiro da banda foi misturado de maneira fantástica com ritmos nordestinos e inclusão de instrumentos como o triângulo, além de letras que faziam referência ao cotidiano do povo daquela região. A sonoridade ficou conhecida como forrócore. Ponto para a banda que parecia ter tido uma visão perfeita do que o mercado buscava para o Rock naquele período.
Gravaram então uma demo, com as músicas “Nêga Jurema“, “Palhas de Coqueiro“, “Marujo” e “Sanidade“. Destas, apenas esta última não foi lançada oficialmente até que Digão assumisse os vocais, já nos anos 2000. Essa fita que chegou às mãos de Miranda e também fez com que algumas portas se abrissem para o Raimundos, que viajou para o Rio de Janeiro, onde tocou com Camisa de Vênus e Ratos de Porão. Também abriram shows do Titãs. Depois disso, seguiram para o estúdio Be Bop, em São Paulo, onde gravaram o homenageado do dia, com Miranda assinando a produção.
Com letras engraçadas (para a época, claro) e que hoje causam desconforto em várias pessoas, os caras chegaram com os dois pés na porta. Do Forró, se inspiraram em ninguém menos que o sanfoneiro Zenilton, de quem eles pegaram algumas composições e fizeram versões maravilhosas. Ele também gravou o vocal para a música “Rio das Pedras“, que ganhou uma versão hardcore para levantar qualquer defunto. Houve espaço também para canções de domínio público (aquelas com mais de cem anos de publicadas e que perdem os direitos autorais, podendo ser utilizada por qualquer pessoa) e muita, mas muita menção ao sexo e a maconha, que na época todos (menos o baterista Fred) eram usuários confessos da erva.
O disco é lindo do início ao fim e escolher os destaques é uma tarefa por demais ingrata. Daqui saíram alguns dos maiores clássicos da banda, que embalaram uma era. Como ficar inerte a músicas como “Puteiro em João Pessoa“, “Palhas de Coqueiro“, a já citada “Nêga Jurema“, “Bicharada” ou “Cintura Fina“? Mas a música que estourou primeiro foi a impagável “Selim“. E com seus versos que deixavam explícitos o desejo do autor pelo órgão sexual feminino, a música desfilava sem o menor pudor pelas rádios. Era o caminho aberto para que o público buscasse as outras treze canções, que são verdadeiras pauladas na cabeça.
Impossível não bater cabeça sem pensar no amanhã, durante os quase 40 minutos de duração da bolacha, que na época também foi lançada em vinil e também em cassete, essa versão, foi adquirida na época por esse redator que vos escreve. É um disco rápido, ao mesmo tempo pesado, simples, direto e reto como um álbum de Hardcore deve soar. E um Hardcore tipicamente brasileiro, com elementos da música nacional. Algo que deu tão certo que nem o mais otimista dos caras da banda poderia imaginar o êxito que a obra causou.
“Selim” foi gravada a revelia pela banda, principalmente por Rodolfo, que a detestava, mas Miranda de maneira genial convenceu a banda a gravar. A música acabou tocando à exaustão nas rádios, daí então a banda produziu nada menos do que cinco videoclipes e os caras começaram a tocar nos quatro cantos do país. O ponto alto foi a participação no Monsters of Rock de 1994, quando tocaram com nada mais nada menos que gente do gabarito de Dr. Sin, Viper, Slayer, Kiss, Suicidal Tendencies e Black Sabbath, além do Hollywood Rock de 1995, quando a apresentação foi gravada e lançada depois no álbum “Cesta Básica” (1996).
O álbum foi certificado com Disco de Ouro e rendeu um contrato com a Warner, pois havia uma brecha no contrato que permitia a banda migrar para a major em caso de sucesso comercial. Eles fizeram valer essa cláusula e isso gerou uma mágoa principalmente por parte de Miranda, que desejava ter o segundo álbum lançado pela Banguela. Mas não tinha jeito, o Raimundos tinha crescido de uma maneira que não tinha mais como ficar em um pequeno selo, ainda que esse selo fosse capitaneado por alguns dos membros do Titãs. O tempo mostrou que a atitude da banda não poderia ter sido a melhor.
Daí pra frente foi só alegria, até que Rodolfo se converteu ao cristianismo e resolveu virar as costas para o seu passado. Mas entre 1994 e 1999, o Raimundos foi seguramente a banda mais importante do Rock brasileiro e provou isso lançando bons álbuns. Mas o primeiro é inesquecível, como diria a propaganda antiga de um desodorante, “a primeira impressão é a que fica”. A primeira impressão do Raimundos não poderia ter sido a melhor. É um baita disco, ainda que sua temática hoje não caiba em nossa sociedade, que está amadurecendo, ainda que muitos ainda insistam que é legal ser machista, misógino, votar em fascistas, mas, a sociedade caminha, em passos lentos, rumo à evolução.
Enfim, hoje é dia de celebrar mais um aniversário deste que é um dos maiores clássicos brasileiros da década de 1990. Se temos muito a lamentar a passagem de Canisso, uma vez que agora só nos resta ouvir as boas linhas de baixo que ele deixou gravadas aqui, por outro lado, a gente pode se orgulhar de ter tido uma banda que conseguiu ser original sem deixar o Rock de lado. O Raimundos não é mais o mesmo desde que Rodolfo saiu da banda e que Digão demonstrou ser um completo alienado quando o assunto é política, mas esse álbum fez história e merece todos os confetes. Então, vamos escutá-lo no volume máximo. E tentemos acompanhar os vocais rápidos e insanos de Rodolfo. Bons tempos que o vocalista era autêntico e original.
Raimundos – Raimundos
Data de lançamento – 02/04/1994
Gravadora – Banguela
Faixas:
01 – Puteiro em João Pessoa
02 – Palhas de Coqueiro
03 – MMS
04 – Minha Cunhada
05 – Rapante
06 – Carro Forte
07 – Nêga Jurema
08 – Deixei de Fumar/ Cana Caiana
09 – Cajueiro/ Rio das Pedras
10 – Bê a Bá
11 – Bicharada
12 – Marujo
13 – Cintura Fina
14 – Selim
15 – Puteiro em João Pessoa (versão alternativa)
16 – Selim (acústica)
Formação:
Rodolfo – vocal
Digão – guitarra
Canisso – baixo
Fred – bateria
Participações especiais:
Carlos Eduardo Miranda – vocal em “Minha Cunhada” e pandeiro em “Cintura Fina”
Guilherme Bonolo – vocal em “Puteiro em João Pessoa“, “Palhas de Coqueiro“, “Minha Cunhada“, “Nêga Jurema“, “Cana Caiana“, “Marujo” e “Cintura Fina” e guitarra solo em “MMS” e “Selim”
Ivan David – vocal em “Puteiro em João Pessoa” e “Selim”
João Gordo – vocal em “MMS”
Nando Reis – violão em “Puteiro em João Pessoa” e viola em “Selim”
Paulo Miklos – vocal em “Carro Forte“, “Bê a Bá” e “Bicharada”
Branco Mello – vocal em “Carro Forte“, “Bê a Bá” e “Bicharada”
Sérgio Brito – vocal em “Carro Forte“, “Bê a Bá” e “Bicharada”
Zenilton – acordeon em “Rio das Pedras” e “Marujo” e vocal em “Rio das Pedras“