Neste 2 de setembro, o Sepultura vai abrir os trabalhos no Palco Mundo no Rock in Rio. Na mesma data, há 29 anos atrás, a formação clássica do Sepultura lançava “Chaos A.D.“, o quinto álbum da discografia da maior banda brasileira de Heavy Metal em todos os tempos e que é tema do nosso Memory Remains de hoje.
O álbum marca uma virada na fase do Sepultura, que começou Death/ Black Metal em “Morbid Visions“, o disco de estreia, depois foi ganhando corpo com a entrada de Andreas Kisser e se tornando referência no Thrash Metal. Mas a inclusão do Groove, elementos da música brasileira e a adoção de afinações mais baixas, foram fatores que tornaram a banda diferenciada na cena. Claro que há os que torcem o nariz e dizem que a banda acabou aqui, mas honestamente, foi aqui que os brasileiros começaram a trilhar o caminho que eles chegariam caso não houvesse a treta que envolveu a então empresária Gloria Cavalera e culminou com a saída de Max. Certeza absoluta que o Sepultura seria o novo Metallica. Só que mais pesado e sem precisar amaciar o seu som.
Para se distanciar do Thrash Metal e deixar de ser só mais uma na multidão, o quarteto se juntou ao produtor Andy Wallace, que já havia trabalhado na mixagem do antecessor “Arise” e todos voaram para o Rockfield Studios, no País de Gales, o mel estúdio onde o Rush gravou “A Farewell to Kings“. O estúdio foi sugestão de Andy Wallace. A banda ficou por lá durante boa parte do ano de 1992 e a única faixa que não foi gravada no Rockfield foi a instrumental “Kaiowas“.
A respeito da “Kaiowas“, eles a gravaram nas ruínas de um castelo medieval de Chesptow, também localizado no País de Gales. Em um primeiro momento eles sequer cogitaram em tocar ao vivo essa música, mas rapidamente mudaram de ideia, como disse uma vez o guitarrista Andreas Kisser, que disse afirmou ter mudado de ideia após ver a banda Neurosis tocar uma faixa acústica ao vivo. Aspas para ele:
“Nós vimos naquele vídeo ao vivo que os caras do Neurosis largaram suas guitarras e todo mundo começou a tocar bateria no palco. Decidimos tentar a mesma coisa. Ensaiamos uma vez e foi maravilhoso. Não paramos de tocar a música ao vivo desde então.”
Duas curiosidades acerca do álbum: a primeira é que finalmente Paulo Junior criou vergonha na cara e passou a registrar suas partes de baixo, que antes eram gravadas por Andreas Kisser ou Max Cavalera. A única vez que ele havia registrado algo foi no final da música “Stronger Than Hate“, lá em 1989, no álbum ‘Beneath the Remains“. Paulo Junior não tomou tal atitude por livre e espontânea verdade e sim porque foi pressionado pelos demais membros da banda. A segunda curiosidade é que a banda gravou alguns covers: “The Hunt“, do New Model Army, “Polícia“, dos Titãs, “Crucificados Pelo Sistema“, do Ratos de Porão, “Inhuman Nature“, do Final Conflict e “Drug Me“, do Dead Kennedys. Somente a primeira entrou no álbum, por sugestão de Igor, grande fã da banda. ‘Polícia” veio como bônus track da versão brasileira e as outras duas acabaram entrando no EP “Refuse/Resist“, lançado pouco tempo depois.
O álbum mostra também uma mudança na parte lírica da banda, já que eles deixaram de lado os temas, digamos, mais obscuros, para abordar os problemas da sociedade como a violência urbana, os problemas sociais, sobretudo os brasileiros, a questão ambiental e contaram até a história do massacre do Carandiru, um presídio em São Paulo onde policiais despreparados acabaram com uma rebelião de detentos, ceifando a vida de muitos deles. Temos aqui as contribuições de Evan Senfield, do Biohazard e de Jello Biafra. Eles são os autores das letras de “Slave New World” e “Biotech is Godzilla“. Vamos botar a bolacha para rolar e dissecar esse discaço, faixa a faixa.
O que podemos dizer de um álbum que abre com três dos maiores clássicos do Sepultura, pelo menos dessa formação que marcou época e que é considerada por muitos como o verdadeiro Sepultura? “Refuse/ Resist” que tem em sua intro as batidas cardíacas de Zyon, filho recém nascido de Max Cavalera e depois emendada com as batidas de Igor, trazendo consigo as guitarras da dupla Max e Andreas. A letra, que fala dos protestos que a população deveria fazer de vez em sempre também é outro ponto a se destacar. A música e seu Groove é perfeita do início ao fim, tendo o solo seu ponto alto e a velocidade gera um moshpit fantástico. “Territory“, composição de Andreas é outro arraso, com a melhor introdução por um baterista de toda a história da música e seu andamento arrastado são lindos. O refrão grudento e o solo em two-hands executado por Andreas é a coisa mais fantástica do mundo. “Slave New World” vem a seguir, com uma pegada um pouco mais rápida que as duas anteriores e fecha essa trinca mágica.
Em “Amen“, o Groove volta a tomar conta de tudo, com Max Cavalera recitando a primeira parte da letra. A música é bem pesada e densa e cabem até cantos gregorianos ali no meio. Coisa linda. “Kaiowas” chega para acalmar os ânimos e uma prévia do que Max Cavalera iria nos proporcionar anos mais tarde em “Roots“. A música é uma ode à tribo indígena Kaiowá, a mesma que a atual candidata a presidência da República, Simone Tebet (MDB) trava uma batalha. Ela que pertence ao grupo dos latifundiários, acha que é dona das terras pertencentes a essa tribo. Grande momento do play, onde a gente pode perceber toda a sonoridade primitiva brasileira.
A seguir, “Propaganda“, a música que daria o título também ao disco. A faixa tem uma pegada visceral, onde o Groove toma conta de tudo novamente, sendo Igor e seu bumbo duplo, os responsáveis pela quebradeira generalizada. Essa foi a primeira faixa que me chamou a atenção quando escutei o álbum pela primeira vez. E ainda chama até hoje. “Biotech is Godzilla” é o mais perto do Thrash Metal de outrora que eles chagaram aqui no aniversariante do dia, uma música rápida, curta, direta e reta, que na verdade é mais um Hardcore com quebradas de andamento onde o Groove entra e reina. “Nomad” é arrastadona, pesada e mostra que o Sepultura estava se tornando, pelo menos naquele momento, definitivamente uma banda de Groove Metal. Ao final da faixa, temos umas gargalhadas, gravadas pelos músicos e incluídas ali. Tais gargalhadas foram inclusas como faixa bônus e é divertido ver os caras se acabando de rir enquanto gravavam essa parte. Andreas Kisser teria afirmado que essa faixa seria a sua resposta para “Sad But True“, do Metallica. A resposta foi bem melhor.
“We Who Are not as Others” tem um clima atmosférico onde Max apenas repete na letra o título da música. Aqui temos outra performance maravilhosa de Igor Cavalera, mostrando que na época era sim o melhor baterista da cena. Suas viradas nesta faixa são absurdamente maravilhosas. Em “Manifest“, Max conta a história do massacre do Carandiru, na primeira metade recitando a letra e na segunda parte ele canta com toda sua fúria. Riffs hipnotizantes marcam a primeira parte da música e depois a música fica bem violenta, novamente com Igor quebrando tudo na bateria.
“The Hunt” ficou sensacional. Até mesmo quem não é fã do New Model Army curtiu essa versão. “Clencned Fist” é a parte triste do play, pois é o anúncio de que estamos chegando ao final da audição. A música vai se desenvolvendo em um compasso arrastado até que do nada, ganha velocidade e aí sim, lembra um pouco do Thrash Metal que os fãs mais xiitas esperavam durante todo o álbum. É difícil escolher a minha favorita do play, mas essa certamente está entre elas. “Polícia” fecha a versão que este que vos escreve tem em mãos e se a versão dos Titãs já é maravilhosa, essa aqui supera tudo. E mostra o quão inspirador a banda de Tony Belloto foi para Max. Se o Sepultura abriu os shows dos Titãs lá em 1987 em BH, na tour do “Chaos A.D.“, as coisas iriam se inverter e os Titãs abririam os shows do Sepultura na Argentina e no Brasil.
Em 49 minutos temos aqui o que podemos chamar de maior álbum do Heavy Metal brasileiro de todos os tempos. Um disco que se não é rápido é pesado, agressivo e mostra uma nova faceta dos brasileiros, ao explorar o Groove, a musicalidade brasileira e unir ao Heavy Metal, o que ajudou a própria banda, já que ela deixou se ser vista lá fora como uma mera cópia do que as bandas estrangeiras faziam.
O Sepultura caiu na estrada, o que rendeu talvez uma das maiores turnês da sua história. Foram shows em festivais como o Dynamo Open Air, o Mosnters of Rock, em Donnington Park, o Hollywood Rock, no ano de 1994, além da famosa turnê nos Estados Unidos junto com o Pantera, durante a Copa do Mundo de futebol que foi realizada na terra do Tio Sam. Era só o começo, eles iriam abalar ainda mais as estruturas do Metal ao lançar “Roots“, três anos depois.
Durante a turnê, houve um incidente que levou Max Cavalera a trocar a letra da música “Antichrist“, originalmente lançada no EP “Bestial Devastation”, para “Anticop“. A polícia de Berlim recebeu uma denuncia falsa de que o tour-bus do Sepultura estava lotado de Cocaína. Insatisfeito com a ação dos policiais, o então líder do Sepultura trocou a letra e o título da música, que era executada naquela turnê. Ele sempre explicava a mudança na letra e quem possui o álbum “The Roots of Sepultura”, lançado depois e que consiste em um álbum duplo onde o primeiro disco é o “Roots” e o segundo um compilado de músicas jamais lançadas em álbuns oficiais, covers e faixas ao vivo, pode conferir uma versão ao vivo da música e Max explicando a troca. Ele não cita diretamente o episódio em Berlim.
“Chaos A.D.” teve um bom desempenho nos charts mundo afora: 11° na Alemanha, Suécia e Reino Unido, 15° na Nova Zelândia e Suíça, 16° na Noruega, 19° na Áustria, 21° na Holanda, 23° na Hungria, 27° na Austrália e 32° na “Billboard 200”. Foi certificado com Disco de Ouro nos Estados Unidos, Austrália, Holanda e Reino Unido. A revista “Rolling Stone Brasil” elegeu o álbum como o 46° em uma lista dos 100 melhores álbuns da música brasileira. Já a versão estadunidense da mesma revista, colocou o álbum na 29ª posição entre os melhores discos de Heavy Metal de todos os tempos. Não é pouca coisa.
Falar sobre esse disco é muito especial para mim, pois trata-se do primeiro disco de Heavy Metal que eu ouvi inteiro na vida. Eu era um adolescente e descobri a banda por acaso. Peguei emprestado uma fita cassete de 90 minutos com uma garota de quem eu era afim, mas ela nunca me deu bola. E meu interesse na fita era pela a banda que estava no lado A, era o Pearl Jam e o disco “VS.“. Depois de algum tempo voltando a fita na caneta (quem tem mais de 40 anos sabe bem do que eu estou falando), eu resolvi dar uma chance ao lado B, que tinha o aniversariante de hoje e a minha vida mudou para sempre. Não namorei com a moça que me emprestou a fita, uma pena, mas os dois discos foram os primeiros que comprei na vida e hoje “Chaos A.D.” é o meu disco favorito do Sepultura, além de ser o álbum que moldou a minha personalidade. Minha gratidão total. E hoje é um privilégio imenso poder escrever sobre um disco tão importante na minha vida e poder compartilhar isso com você, caro leitor, é uma dádiva.
Pois hoje é dia de celebrar esse baita álbum. O Sepultura ou o que restou dele, se apresenta logo mais no Rock in Rio, juntamente com a Orquestra Sinfônica Brasileira e seria uma surpresa agradável se eles resolvessem tocar esse álbum na íntegra. Mas essa formação se distancia cada vez mais do passado e é pouco provável que eles toquem mais que as duas primeiras faixas deste maravilhoso álbum. Portanto se você não vai a noite de abertura do Rock in Rio, sugiro que coloque esse play para tocar no volume máximo. O Sepultura foi gigante nos anos 1990 e esse álbum é uma prova disso. Deveria ser tombado, pois trata-se de um patrimônio do nosso Metal e deve ser conservado para sempre.
Chaos A.D. – Sepultura
Data de lançamento – 02/09/1993
Gravadora – Roadrunner
Faixas:
01 – Refuse/ Resist
02 – Territory
03 – Slave New World
04 – Amen
05 – Kaiowas
06 – Propaganda
07 – Biotech is Godzilla
08 – Nomad
09 – We Who Are not as Others
10 – Manifest
11 – The Hunt
12 – Clencned Fist
13 – Polícia
Formação:
Max Cavalera – guitarra/ vocal
Igor Cavalera – bateria
Andreas Kisser – guitarra
Paulo Junior – baixo