O ano de 1989 é muito emblemático: a guerra fria entrava no seu ato final e neste ano, cairia o muro de Berlim, o símbolo que melhor representava a divisão do mundo nos blocos capitalista, liderado pelos Estados Unidos e o socialista, liderado pela antiga União Soviética, hoje Rússia e que tinha um certo Vladmir Putin atuando como agente da KGB. Ayrton Senna ostentava o seu primeiro título mundial de F1, mantendo o Brasil no topo, uma vez que o hoje bolsomínion Nélson Piquet havia conquistado o tricampeonato dois anos antes. E na música, o Sepultura lançava “Beneath Remains”, exatamente neste 7 de abril. Era o terceiro álbum da banda e o segundo com a formação clássica, que perduraria até o ano de 1996. Hoje essa pérola é assunto do nosso Memory Remains.
Precisamos voltar um pouco no tempo para poder entender o contexto que resultou na gravação de “Beneath the Remains“: Max Cavalera conta em sua autobiografia, “My Bloody Roots“, que viajou para os Estados Unidos em 1988, tendo em mãos algumas cópias do “Schizophrenia“, segundo álbum da banda e que já contava com Andreas Kissser na guitarra. A entrada do “alemão” já deu uma tremenda encorpada na banda e o disco foi um sucesso tão grande que, mesmo tendo sido lançado exclusivamente no Brasil, ele fora pirateado por todo o mundo e as pessoas já sabiam que no Brasil não havia apenas Tom Jobim, Chico Buarque, samba, praia e futebol: havia uma banda despontando no cenário.
A viagem de Max fora bem sucedida e resultou em um contrato com a Roadrunner, que foi bem longevo. Ainda em 1988, ficou decidido que a banda gravaria o álbum no Rio de Janeiro, mo estúdio “Nas Nuvens“. A banda mais tarde falaria que a decisão em gravar ali é que foi o mesmo estúdio em que os Titãs gravaram o emblemático álbum “Cabeça Dinossauro” três anos antes e o Sepultura havia sido a banda de abertura da banda paulistana anos antes, em Belo Horizonte, tendo iniciado uma amizade entre seus membros. Em “Chaos A.D.“, os Titãs foram homenageados com o cover para “Polícia“, que era obrigatoriamente executada ao vivo nos tempos de Max Cavalera.
O então desconhecido Scott Burns fora enviado ao Rio de Janeiro para produzir o álbum, e, embora o cara tenha tido uma péssima impressão de nosso país, uma vez que fora vítima de furto no próprio quarto do hotel em que ele e a banda estavam hospedados na capital fluminense, o cara não se abalou e fez um excelente trabalho. Max ainda conta em seu livro uma curiosidade, em que o produtor da banda seria Jeff Waters, do Annihilator. Porém, este não se mostrou disposto a vir ao Brasil e a banda não dispunha de recursos para viajar até o Canadá.
Escolhido o produtor, a banda se reuniu para registrar o seu debut por uma gravadora multinacional. E o resultado foi nada menos do que espetacular. A banda se mostrava ainda melhor do que no álbum anterior e o Thrash Metal oitentista se mostrava bem latente por aqui, comprovando que a banda começava a escalada rumo ao ápice, que viria sete anos depois, em proporções mundiais. Vamos passear pelas nove faixas que compõem o aniversariante do dia.
Colocando a bolacha para rolar, temos a faixa título com sua intro bem diferente, mas que logo se transforma em um belo Thrash Metal para ninguém botar defeito. Rapidez e riffs maravilhosos tomam as rédeas da música, que tem uma pequena mudança de andamento no meio, mas em geral é veloz. Essa música nasceu clássica.
“Inner Self” é outra clássica, onde a banda dá um andamento um pouco mais cadenciado, até a terceira estrofe, onde o “pau canta na casa de Noca”. O solo maravilhoso de Andreas Kisser nos faz perdoar a pronúncia ainda tosca do inglês de Max. Hoje esta é uma das pouquíssimas músicas ainda executadas pela atual formação e confesso que acho super esquisito assistir Derrick Green cantá-la atualmente (este redator que vos escreve é assumidamente uma viúva dos Cavaleras e não faz questão alguma de esconder tal status).
“Stronger Than Hate” traz a velocidade de volta, que junto com a crueza da banda à época, tornam essa música especial e que mantém o nível da obra lá no alto. A curiosidade é que no final desta, há uma tentativa de solo no baixo, que seria o primeiro registro de Paulo Junior, hoje assina como Paulo Xisto nos álbuns da banda. Porém, ele só iria gravar mesmo as suas partes de verdade a partir do “Chaos A.D.”. Não é segredo para ninguém que nestes primeiros anos de Sepultura, eram Max e Andreas quem se revezavam gravando as partes do baixo. E até os dias atuais é notória a dificuldade que Xisto tem em tocar em suas partes.
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“Mass Hypnosis” é para mim a melhor faixa do disco, ela é crua, bruta, veloz e com um refrão grudento: impossível você escutá-la e não ficar com os versos do refrão na sua cabeça: “Hate through the arteries/mass hypnosis“ (Ódio através das artérias/ Hipnose em massa – tradução livre). E sem falar na parte antes do refrão em que os riffs claramente nos faz lembrar da música “Ride the Lightning“, do Metallica.
“Sarcastic Existence”, a faixa número cinco, começa com umas batidas bem interessantes de Igor Cavalera, numa prévia do monstro das baquetas em que ele se transformaria. E numa intro bem longa, trabalhada e cheia de mudanças de andamento, a música se transforma em um Thrash Metal de respeito, com as repetições das mudanças de andamento, tal como na intro. Com certeza absoluta que essa é a composição mais complexa do disco. Muito boa!
Estamos na metade final do play e c “Slaves of Pain” chega ríspida, veloz, pesada, brutal, com uma leve mudança em seu andamento no refrão, onde os riffs da dupla Max e Andreas fazem realmente a diferença. Esta faixa também conta com algumas mudanças de andamento bastante interessantes. Até aqui, nada a reclamar deste álbum que está lindo.
“Lobotomy” mantém o pique da faixa anterior, uma música bem veloz em que os então garotos do Sepultura destilam toda a sua fúria em forma de música, e claro, colocam em evidência a sua criatividade enquanto músicos. Aqui o destaque é para as guitarras de Andreas Kisser, mostrando de fato que ele era a opção correta para substituir Jairo Guedz. Arrisco a dizer que a técnica do alemão era o que a banda precisava para decolar.
“Hungry” com um riff bem interessante de Andreas Kisser e depois se vê de tudo um pouco nesta composição, que também se mostra bem complexa, cheia de partes diferentes. Temos passagens pesadas, com riffs super interessantes, rapidez, um solo magistral. Uma senhora música para ninguém colocar defeito.
Fechando a bolacha, temos a não menos maravilhosa “Primitive Future“, que chega dando na cara do ouvinte uma brutalidade até então jamais vista na banda. As outras músicas são rápidas, pesadas, mas essa transmite uma fúria fora do normal. Veloz quase o tempo todo, apenas com uma breve passagem em que os riffs pesados e com andamentos nem tão rápidos dão o ar de sua graça. Não tinha música melhor para um encerramento apoteótico.
Como sempre faço, falarei da minha relação com esse disco. Lembro que comprei há exatamente 24 anos, ou seja, quando Max Cavalera já havia deixado a banda pelas razões que todos nós já conhecemos. Mas eu conhecia algumas músicas que eles ainda tocavam ao vivo, como “Beneath the Remains“, “Inner Self” e “Mass Hypnosis“. Eu havia me tornado fã do Sepultura após escutar a fitinha cassete em que no lado B, tinha o “Chaos A.D.”, isso em 1994. E quando comprei e coloquei para rodar a bolacha, ao mesmo tempo que tive um impacto com a qualidade das músicas, eu me senti um pouco frustrado, por não tê-los conhecido antes e ter aproveitado melhor essa época, em que a banda tocava muitas destas músicas no seu setlist.
Infelizmente, eu não tinha idade para ir no Rock in Rio de 1991, no qual a banda se apresentou. Foi ali que pela primeira vez eu escutei falar do nome da banda e que tomei conhecimento de ter Heavy Metal sendo tocado por brasileiros, apesar de eu não ser ainda familiarizado com o estilo. Porém tudo acontece no seu tempo e hoje eu posso me orgulhar de poder fazer parte de um time de redatores da Headbangers News, onde eu tenho a oportunidade, dentre outras coisas, de escrever sobre os álbuns que marcaram a minha vida, e claro, que tem influência na cena. E esse play é tão importante, que é citado, por exemplo, no encarte do debut álbum do Cannibal Corpse, “Eaten Back to Life“, em que a banda afirma ter sido o “Beneath the Remains” uma influência lá nos primórdios daqueles que hoje são os reis do Death Metal.
E a partir daqui, a banda só tenderia a crescer. Após o lançamento do álbum, vieram turnês mundo afora, incluindo a famosa tour em que houve a treta dos brasileiros com os alemães do Sodom. Muito se fala sobre uma suposta rivalidade entre as duas bandas durante essa turnê, o que foi desmentido por Tom Angelripper, líder da banda alemã, em entrevista que ele me concedeu e que você pode ler, clicando AQUI. Assim como “Schizophrenia“, que marcava a estreia de Andreas Kisser na banda, havia sido um marco, “Beneath the Remains” era outro marco. Mais que isso, esse disco é um tesouro do Metal nacional.
Era uma banda brasileira aparecendo para o mundo e isso é digno de orgulho, pois se portas foram abertas no exterior para que Viper, Angra, Krisiun, Claustrofobia, Torture Squad, entre outros pudessem adentrá-las, tudo foi porque esses garotos se meteram a fazer Heavy Metal em uma terra em que na época o som que dava dinheiro era o de artistas de gosto duvidoso. Então vamos celebrar os 33 anos muitíssimo bem vividos deste disco, que em minha opinião, faz parte do que eu costumo chamar de quadrado mágico da banda, que mostrava uma nova forma de se fazer Metal, incluindo músicas do país natal dos caras, o que é inimitável e único. Vamos curtir o aniversariante do dia, de preferência escutando no volume máximo. Essa formação era o verdadeiro Sepultura.
Beneath the Remains – Sepultura
Data de lançamento: 07/04/1989
Gravadora: Roadrunner
Faixas:
01 – Beneath the Remains
02 – Inner Self
03 – Stronger Than Hate
04 – Mass Hypnosis
05 – Sarcastic Existence
06 – Slaves of Pain
07 – Lobotomy
08 – Hungry
09 – Primitive Future
Formação:
Max Cavalera – Vocal/Guitarra
Igor Cavalera – Bateria
Andreas Kisser – Guitarra
Paulo Jr. – Baixo (???)