Como pode um disco idealizado e concebido no já distante ano de 1989 ainda ser atual? Essa pergunta é fácil de ser respondida e provavelmente é a explicação mais exata do que é o Brasil, essa República relativamente nova. João Gordo certa vez disse em entrevista que nosso país vive em ciclos que se repetem e eis que chegou a vez de um disco gravado há 32 anos fazer o total sentido agora. Vamos destrinchar liricamente o disco “Brasil“, do Ratos de Porão, lançado quando a República comemorava seu primeiro centenário.
O RDP está longe de ser uma banda popular por estas terras, por diversos fatores: tocam música rápida e pesada, tendo letras com enfoque nos nossos problemas sociais, o que não desperta o interesse da grande massa, que está mais interessada em jogar a bunda no chão ou de dançar ao som de músicas com letras simplesmente deprimentes, que banalizam o sexo ou que exalta as relações extraconjugais. É exatamente esse tipo de coisa que os governantes mal intencionados querem, que o grande público esteja ali distraído com esse tipo de música ou com o resultado do seu time de futebol, enquanto eles nos roubam ou tomam decisões que nos afetam no dia a dia. Eles seguem na contramão disso. Infelizmente poucos se atentam nisso.
Para contextualizar o disco, em 1989, vivíamos o caos pós-ditadura militar, que arrasou o país por 20 anos, muita semelhança com a terra arrasada que o próximo presidente irá encontrar quando esse bandido travestido de chefe de Estado sair e isso vai acontecer logo. Pois bem, inflação alta, economia parada, alto índice de desemprego, falta de comida nas prateleiras dos mercados. Nossa constituição, garantindo direitos que o povo não sabia o que era e que esse governo fascista insiste em atentar, havia sido escrita e promulgada há pouco mais de um ano. E foi assim que o Ratos de Porão conseguiu contrato com a Roadracer, braço da Roadrunner, para produzir seu quarto full-lenght.
Os caras viajaram para Berlim, onde se instalaram no “Music Lab Studio”, durante o mês de junho de 1989, com produção de Harris Johns. Era a primeira oportunidade de mostrar ao mundo o som que esse quarteto brasileiro era capaz de fazer, e também de mostrar os problemas de um país pobre, do terceiro mundo. Gordo lembra que eles nos falavam inglês e o pouco que conseguiam era tentar explicar que não tinham dinheiro e que não falavam inglês (no money, no english), o que fez com que os executivos da gravadora subentendessem que eles estariam cobrando para conversar com eles na língua universal. A história virou lenda e até título de uma compilação da banda, anos mais tarde.
O play abre com “Amazônia Nunca Mais“, que trata de um assunto que acontece desde sempre, vai alertar o inteligente leitor. Sim, a Amazônia sempre foi brutalmente desmatada, mas nesse governo, os índices mais alarmantes de queimadas e desmatamento foram identificados. Com um ministro do meio ambiente que tinha conflito de interesses com madeireiros e como ele mesmo disse em reunião presidencial, que era para aproveitar toda atenção da opinião pública para os problemas da pandemia e “passar a boiada”. Por passar a boiada, entenda se destruir ainda mais a maior biodiversidade do planeta. Mais atual não pode ser.
“Retrocesso” fala de um retorno dos militares ao poder, que hoje faz mais sentido, visto a quantidade de militares da ativa ou da reserva que fazem parte da atual equipe ministerial. Um deles, inclusive, foi ministro da saúde sem nunca ter frequentado uma sala de aula do curso de medicina e patrocinou o maior genocídio da história desse país, ao planejar o uso de pessoas como cobaias humanas. Muitos manauaras perderam a vida, por irresponsabilidade desta corja. O curioso dessa música é que na introdução temos a música que embalou a conquista do tricampeonato da seleção brasileira, em forma de assobio. Essa música era mais uma propaganda do regime ditatorial militar do que uma ode à seleção. Quando criança, eu até gostava da letra, mas ao descobrir seu significado, tomei ojeriza.
“Aids, Pop, Repressão” é um dos grandes hits da banda, se é que podemos dizer isso de uma banda underground. É atual e poderíamos apenas fazer uma adaptação no título: Aids, Sertanejo Universitário, Genocídio. Mas o contexto é basicamente o mesmo. “Lei do Silêncio” trata do problema que acomete as localidades em que o Estado faliu e onde reinam o poder paralelo como tráfico de drogas ou as milícias armadas. Você vê o errado acontecendo e não pode falar, para não ser morto. O que aconteceu com a vereadora Marielle Franco foi basicamente isso. Ela resolveu encrar os maus policiais e foi sumariamente executada por milicianos. A mando de quem? Desconfiamos, mas não podemos afirmar, pois não temos provas. E provavelmente nunca chegaremos a essas provas.
“SOS País Falido” é exatamente o retrato do Brasil atual. A letra fala que “acreditamos em deus e na seleção”. Hoje os neopentecostais tentam impor na marra o fim da laicidade do Estado e ainda usam a camisa da seleção para que sejam facilmente identificados, em nome de um patriotismo falso. Quantos estão passando fome agora? As carnes caras, cada vez mais longe do prato do brasileiro, que come osso bovino, carcaça de frango e a quantidade de tolos que insistem em culpar um governo que já está longe do poder há mais de seis anos. Só pode ser coisa de quem acredita que a Terra é plana ou em seres abstratos.
“Gil Goma” é uma paródia a um repórter brasileiro que se chamava Gil Gomes e que narrava as mesmas matérias sensacionalistas e sanguinárias que temos hoje com Luiz Bacci, Datena, Sikera Júnior. Eles aprenderam com Gil Gomes. Gordo imitando o sotaque do repórter é um momento hilário, que ameniza um pouco o clima tenso do play. Beber até Morrer não é um tema político-social, mas uma crítica aos que acham que recorrer a bebida é a melhor saída para resolver os problemas pessoais.
Clayton Clemente/Divulgação
“Plano Furado II” é a continuação da faixa “Plano Furado“, lançada em “A Cada Dia Mais Sujo e Agressivo“, o disco antecessor deste e ambas são paródias do plano econômico da época, chamado Plano Cruzado, quando se cortava os zeros da moeda para tentar conter a inflação. Hoje a nossa moeda permanece a mesma há quase 30 anos, mas a desvalorização dela perante ao dólar e ao Euro, por exemplo, é gritante. E esse idiota que está no poder não faz nada, enquanto seu ministro da economia tem negócios comprovados em paraísos fiscais e definitivamente detesta pobre. Basta ver seu discurso sobre as empregadas que viajavam para a Disney.
“Heroína Suicida” encerra a primeira parte do play e quem está no vinil, tem que virar a grande bolacha ao término desta. A letra é atual, bastando trocar a heroína pelo crack, a droga que hoje é responsável por um dos maiores problemas sociais: a população de rua e os furtos nas grandes cidades. Lembrando que nem todo morador de rua é usuário de crack, mas grande parte dos usuários deste entorpecente vive nas chamadas crackolândias. Não percam as contas, apenas quinze minutos se passaram e só uma parte dos problemas do Brasil foram retratados pelas ratazanas. “Crianças sem Futuro” fala das mortes infantis que afetam nosso país desde sempre. E de todo tipo de violência sofrida por elas, principalmente nas camadas mais baixas da sociedade. Quantas crianças são forçadas a trabalhar, a pedir esmola, a fazer sexo, apanham e são mortas. Quantas crianças que vivem em comunidades carentes e não tem acesso a educação. É triste, mas é uma realidade incontestável.
“Farsa Nacionalista” é a letra que o próprio Gordo assume como meio fora de contexto na época, mas que faz o maior sentido hoje. Vejamos o discurso dos apoiadores deste desgoverno: eles se apoiam em um amor à pátria para justificar todo tipo de preconceito, discriminação, a fé em um deus tirano, sim, porque o Deus deles é perverso, não gosta de gays, de negros e de quem é de esquerda. Usar uma camisa amarela e sair nas ruas sem ser confundido com um retardado mental é tarefa quase que impossível. Seria uma premonição do vocalista/letrista? Não, basta olharmos o histórico de nosso país, que vive de golpes desde que os portugueses burlaram o tratado de Tordesilhas para explorar mais das terras brasileiras do que o “combinado”, passando pelo golpe da maioridade, que alçou D. Pedro II ao poder, ao golpe que instaurou a República, o golpe de Vargas, o golpe militar e o último golpe que tirou Dilma Rousseff da cadeira presidencial, sem que esta tenha cometido crime de responsabilidade, ao contrário deste que está aí praticando crimes diários.
“Traidor” talvez não se aplique ao atual mandatário, porque ele tem todos os defeitos do mundo, mas se tem uma coisa que ele realmente não fez, foi trair aos que votaram nele, ainda que muitos se arrependeram e debandaram. Mas ele só está fazendo aquilo que prometeu, para delírio dos acéfalos, que agem como animais que se alimentam de restos. “Porcos Sanguinários” fala dos policiais, que seguem os mesmos desde sempre: corruptos, violentos, opressores e assassinos. Eles têm alvos em comum: negros, pobres, moradores de comunidades. Eles são pós graduados em abuso de poder e é uma instituição falida assim como o Estado e que deve acabar.
“Vida Animal” é uma letra que pode se encaixar perfeitamente a um bolsomínion, pois fala das coisas com as quais eles se identificam: rir da miséria alheia, usar argumentos rasos para justificar o injustificável. Talvez na época, Gordo quis mandar um recado aos playboys, mas hoje a idiotice faz parte de quem acha que os problemas do Brasil se resumem ao PT, como se Cabral tivesse hasteado uma bandeira vermelha ao atracar em Porto Seguro, em 22 de abril de 1500. “O Fim” é uma faixa instrumental que tem a zoeira como foco. “Máquina Militar” nos remete… Aos sanguessugas militares, como esse aí que está no poder e se autointitula capitão, um sujeito que foi preso por incitar a violência no quartel. E a letra fala também sobre o descaso com o soldado que fica mutilado, é simplesmente relegado à margem.
“Terra do Carnaval” é a música que melhor descreve a pátria Brasil. A maioria é pobre e se lasca para viver com um salário de miséria, enquanto o presidente come uma picanha que custa quase dois meses de trabalho desse desafortunado. Sempre que alguém me pede uma definição do Brasil, eu apresento a letra dessa música. Tá tudo ruim, mas no carnaval todo mundo se esquece de tudo e cai na folia, o famoso pão e circo. Não importa passar fome por onze meses no ano, mas em fevereiro é de lei cair na folia. E os políticos novamente se aproveitam para roubar, sugar e enriquecer cada vez mais. O povo tem os governantes que merecem.
“Herança” não fala de política, mas conta uma história macabra sobre um sociopata que aniquila toda a sua família em nome dos bens. O caso de Suzane Von Richtoffen talvez seja o caso mais notável, mas existem inúmeros outros casos, a maioria deles, envolvendo pessoas que tiram fotos fazendo arminha com os dedos, usando camisa da seleção para se dizer amante do país, pregando o ódio, matando ex-companheiras, transexuais, pessoas pretas, tudo justificando a existência de um deus que aparentemente detesta tudo isso.
Em meia hora cravada, o Ratos de Porão explanou os problemas de 32 anos atrás que se repetem atualmente. Quem poderia imaginar que estaríamos vivendo dias difíceis, com um presidente que não governa, que não teve sabedoria para lidar com uma pandemia. Ainda que o coleguinha Headbanger reaça tente defender dizendo que ele não criou o vírus, mas de nada adianta se ele não fez nada para combater o vírus quando ele foi identificado por aqui. Não adianta o cara comer picanha de R$ 1800/kg se parte do seu povo passa fome. Defender ideias fascistas em nome de um falso combate a corrupção. É o Brasil bem representado e bem explicado no álbum homônimo.
Aqui um parágrafo para falar da sonoridade de “Brasil“, que não é o tema principal desta matéria: na época, a banda estava em processo de evolução do seu som do Punk para o Crossover, com influências nítidas de bandas como English Dogs, Discharge, Extreme Noise Terror, entre outras. Tal fator acabou gerando revolta nos mais xiitas, que até hoje chamam a banda como traidora do movimento. É um adjetivo tão sem noção, os caras não conseguem compreender que a banda seguia para se tornar uma das bandas mais pesadas e relevantes do cenário brasileiro. O respeito que os caras conseguiram lá fora, principalmente em Portugal, é digno de nos encher de orgulho. Hoje a banda faz algo que podemos chamar de Crossover Thrash, uma sonoridade única e original.
A banda de João Gordo e Cia. é sem dúvida o maior nome da música pesada nacional, quando o assunto é fazer letras de protesto. E os caras não agem como a maioria das bandas que ou se dizem isentos ou se assumem como apoiadores desse governo que sem dúvida é o pior dentre todos os outros 37 que o antecederam, desde que nos tornamos República. Eles mostram que aprenderam o que é o Rock ‘n’ Roll, que o estilo não pode jamais se alinhar a governantes autoritários, que pregam o ódio às minorias. Esse disco é uma aula sobre o Brasil contemporâneo e todo headbanger seja ele de direita, de esquerda ou aquele que se diz “isentão” deveriam ter em sua coleção.
Brasil – Ratos de Porão
Data de lançamento – 1989
Gravadora – Roadracer
Faixas:
01 – Amazônia Nunca Mais
02 – Retrocesso
03 – Aids, Pop, Repressão
04 – Lei do Silêncio
05 – SOS País Falido
06 – Gil Goma
07 – Beber até Morrer
08 – Plano Furado II
09 – Heroína Suicida
10 – Crianças sem Futuro
11 – Farsa Nacionalista
12 – Traidor
13 – Porcos Sanguinários
14 – Vida Animal
15 – O Fim
16 – Máquina Militar
17 – Terra do Carnaval
18 – Herança
Formação:
João Gordo – vocal
Jão – guitarra/ violão
Jabá – baixo
Spaghetti – bateria